BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DO RECONHECIMENTO JUDICIAL DE PATERNIDADE

BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DO RECONHECIMENTO JUDICIAL DE PATERNIDADE

O conceito de filiação, assim como diversos outros institutos jurídicos – principalmente do Direito de Família, sofreu diversas modificações no decorrer da história, tendo inclusive, outrora, até cunho discriminatório, quando a distinção dos filhos era feita com base nas concepções de família legítima ou ilegítima.

Hodiernamente, filiação se apresenta apenas como uma situação de estado em que se reveste determinada pessoa. A respeito disto, dispõe Edmilson Villaron Franceschinelli que o “estado de filiação é a situação de fato em que se encontra uma pessoa na qualidade de filho, ou é a situação que vincula a pessoa a uma família e do qual originam-se efeitos e consequências jurídicas”.

Segundo o supracitado doutrinador, a palavra “filiação” deriva, etimologicamente, do latim filiatio e designa a relação estabelecida entre pais e filhos, “na linha reta, gerando o estado de filho, decorrente de vínculo consanguíneo ou civil, e criando inúmeras consequências jurídicas”. Seguindo mesma linha, Sílvio Rodrigues define filiação como sendo “a relação de parentesco consanguíneo, em primeiro grau e linha reta, que liga uma pessoa àquelas que a geraram, ou receberam como se a tivessem gerado”.

Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald dispõem acerca da formação vínculo jurídico da filiação: “sob o ponto de vista técnico-jurídico, a filiação é a relação de parentesco estabelecida entre pessoas que estão no primeiro grau, em linha reta entre uma pessoa e aquelas que a geraram ou que a acolheram e criaram, com base no afeto e na solidariedade, almejando o desenvolvimento da personalidade e a realização pessoal”.

O direito ao reconhecimento de estado de filiação/paternidade é personalíssimo, indisponível e imprescritível, estando assentado no princípio da dignidade da pessoa humana. Apesar do Código Civil não dispor a respeito do prazo para se buscar tutela jurisdicional com o intuito de investigar a existência do vínculo da paternidade, o art. 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente proclama a imprescritibilidade do reconhecimento do estado de filiação, in verbis: “O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de justiça”.

Ressalte-se que a prescrição somente se dará quanto aos efeitos patrimoniais, conforme se verifica na Súmula 149 do Supremo Tribunal Federal: “É imprescritível a ação de investigação de paternidade, mas não é o de petição de herança”.

A medida judicial, como instrumento apto a viabilizar o reconhecimento judicial (coativo/forçado) da paternidade, é popularmente conhecida como “ação de investigação de paternidade” (ou maternidade – hipótese menos presente em nosso Poder Judiciário), cujo amparo legal se encontra disposto no art. 27 do ECA. A pretensão consiste na declaração da existência do vínculo de filiação, podendo ser fundado em duas causas de pedir distintas: o vínculo biológico ou existência de paternidade socioafetiva.

A respeito do surgimento da possibilidade de reconhecimento da paternidade socioafetiva, Denise Damo Comel no diz que:

A figura da paternidade socioafetiva passou a ser admitida no ordenamento jurídico com a promulgação da Constituição da República de 1988, que, calcada no princípio da dignidade da pessoa humana, proclamou a igualdade entre todos os filhos, independentemente da origem da filiação, expungindo o tratamento discriminatório dispensado à filiação do Código de 1916. No Código Civil vigente, a concepção de paternidade socioafetiva exsurge da interpretação da regra contida no art. 1.593, na parte em que estabelece que o parentesco pode resultar não somente da consanguinidade, como também de outra origem (2016, p. 458).

Em referência ao teor do dispositivo legal supracitado, referida doutrinadora ainda cita as palavras do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Edson Fachin:

Abre espaço para novas formulações já em construção, especialmente a socioafetiva cabível na outra origem [...] A verdade sociológica da filiação se constrói, revelando-se não apenas na descendência, mas no comportamento de quem expende cuidados, carinho no tratamento, quer em público, quer na intimidade do lar, com afeto verdadeiramente paternal, construindo vínculo que extrapola o laço biológico, compondo a base da paternidade (FACHIN apud COMEL, 2016, p. 459).

Nesta mesma linha de raciocínio, Maria Berenice Dias dispõe que:

O desenvolvimento da sociedade e as novas concepções de família emprestaram visibilidade ao afeto, quer na identificação dos vínculos familiares, quer para definir os elos de parentalidade. Passou-se a desprezar a verdade real quando se sobrepõe um vínculo de afetividade. A maior atenção que começou a se conceder à vivência familiar, a partir do princípio da proteção integral, aliada ao reconhecimento da posse do estado de filho, fez nascer o que se passou a chamar de filiação sociafetiva (2013, p. 412).

A respeito do instituto da paternidade sociafetiva, Denise Damo Comel nos traz as seguintes considerações:

A doutrina ensina que os três elementos essenciais para constituição da paternidade socioafetiva são o uso do nome (nomen), o tratamento (tractatus) e a fama (fama), ou seja, “que o pretenso filho tenha sempre usado o nome do pai ao qual ele pretender; que o pai o tenha tratado como seu filho e tenha contribuído, nesta qualidade, para a sua educação, para sua manutenção e para o seu estabelecimento; que tenha sido ele reconhecido, constantemente, como tal na sociedade; e que tenha sido ele reconhecido como tal pela família.

Disso se tem que a paternidade socioafetiva começa a ser construída na infância, pois é predominantemente nesta fase da vida que o filho está em processo de formação da personalidade e na qual a função paterna, juridicamente falando, é exercida em toda a sua plenitude.

Mesmo porque, a paternidade socioafetiva está intimamente ligada ao exercício do poder familiar, que é o encargo atribuído pela lei ao pai e a mãe de criar e educar o filho menor, assegurando-lhe o atendimento de todos os direitos que lhe são reconhecidos como pessoa, em face de sua condição peculiar de desenvolvimento. Poder familiar, aliás, que consiste no vértice e no centro do sistema civil de proteção da criança e do adolescente, tanto do ponto de vista sociológico, quanto jurídico, sendo a figura de conteúdo mais amplo e regulação mais completa, que se constitui no paradigma e ponto de referência de outras figuras de proteção da infância e adolescência.

Nestes termos, então, em qualquer situação que se pretenda o reconhecimento de paternidade socioafetiva é de rigor que esteja evidenciada a existência de relação de poder familiar, ou seja, de um ser humano em processo de crescimento e de formação pessoal, sendo criado e educado por um homem que age como se seu pai fosse (2016, p. 459/460).

Verifica-se então que, no caso concreto, o investigante deve comprovar de forma contundente que o seu relacionamento com o suposto pai consistiu em autêntica relação de paternidade, demonstrando que ele o criou como se verdadeiro filho fosse, embora inexista qualquer registro nesse sentido em seu assento de nascimento (COMEL, 2016, p. 460).

No tocante a importância do reconhecimento da paternidade sociafetiva, temos as lições de Zeno Veloso:

Se o genitor, além de um comportamento notório e contínuo, confessa, reiteradamente, que é o pai daquela criança, propaga esse fato no meio em que vive, qual a razão moral e jurídica para impedir que esse filho, não tendo sido registrado como tal, reivindique, judicialmente, a determinação de seu estado? (1997, p. 28).

Carlos Roberto Gonçalves nos ensina que os efeitos da sentença declaratória da existência do vínculo de paternidade são os mesmos do reconhecimento voluntário e também possuem efeitos ex tunc: retroagindo à data do nascimento do filho (Código Civil, art. 1.616) (2011, p. 351).

A respeito da legitimidade ativa e passiva na ação de investigação de paternidade, o referido doutrinador tece os seguintes comentários:

A legitimidade ativa para o ajuizamento da ação de investigação e paternidade é do filho. O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo dele, por isso, a ação é privativa dele (2011, p. 353).

A legitimidade passiva recai no suposto pai ou na suposta mãe, dependendo de quem está sendo investigado. Se o demandado já for falecido, a ação deverá ser dirigida contra os seus herdeiros (2011, p. 356).

Caso o investigante seja pessoa absoluta ou relativamente incapaz, sua representação processual deverá ser realizada através de representação ou assistência de seu representante legal, em atenção ao seu respectivo grau de capacidade (Código Civil, art. 3º, 4º e incs. c/c art. 115 e art. 1.634). Ainda, “o direito ao reconhecimento da paternidade é indisponível, pelo que não é possível à mãe ou tutora da menor desistir da ação já em curso” (GONÇALVES, 2011, p. 355).

A participação do Ministério Público na ação de investigação de paternidade é indispensável, já que o objeto da demanda, via de regra, refere-se à interesse de menor incapaz (CPC, art. 178, II), tendo, ainda, legitimidade extraordinária para atuar judicialmente em nome dos menores de 18 anos, não emancipados (Lei 8.560/1992, art. 2º, §5º).

No entanto, observando que o atual CPC abandonou, no dispositivo legal que se refere às hipóteses de atuação do Parquet como fiscal da ordem jurídica (CPC, artigo 178), a referência expressa às causas específicas em relação ao estado da pessoa, pátrio poder, casamento, dentre outras, abriu-se, então, a possibilidade de não intervenção do órgão ministerial em algumas situações, antes obrigatórias, como, por exemplo, nos casos de investigação de paternidade entre partes maiores e capazes.

Considerando que as ações de investigação de paternidade envolvem o estado das pessoas e consequentemente direitos indisponíveis, não se operam os efeitos da revelia (CPC, art. 345, inc. II). “Assim, mesmo que o réu seja citado pessoalmente, se não contestar, não há como reputar verdadeiros os fatos afirmados pelo autor. É necessário a produção de provas” (DIAS, 2013, p. 422).

A respeito dos meios de probatórios admitidos na ação de investigação para comprovar a alegada paternidade, o art. 2º-A da Lei 8.560/92 dispõe que “na ação de investigação de paternidade, todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, serão hábeis para provar a verdade dos fatos”.

Nas ações de investigação de paternidade que a causa de pedir for fundada exclusivamente no vínculo biológico, o juízo declarará a paternidade se ficar verificada a existência de vínculo biológico através da realização do exame pericial de DNA: “O exame pericial de DNA consiste em prova científica de valor incontestável, capaz de determinar com precisão e certeza a paternidade biológica, de modo que seu resultado repercute, diretamente, no convencimento do julgador” (COMEL, 2016, p. 453).

No que tange à impossibilidade de coerção do investigado para realização do exame pericial de DNA, temos os ensinamentos de Mauro Nicolau Júnior e Fátima Nancy Andrighi apud Maria Berenice Dias:

Ainda que exista o dever de ambas as partes de colaborar com a justiça e de proceder com lealdade e boa-fé, não se pode impor ao réu que se submeta coactamente à coleta de material, ainda que o exame possa ser realizado com apenas um fio de cabelo. Ainda assim, a resistência do réu é respeitada. O direito à integridade física configura verdadeiro direito subjetivo da personalidade, garantindo constitucionalmente, cujo exercício, no entanto, se torna abusivo se servir de escusa para eximir a comprovação, acima de qualquer dúvida, do vínculo genético, a fundamentar adequadamente as responsabilidades decorrentes da relação de paternidade (NICOLAU JÚNIOR apud DIAS, 2013, p. 423). Mas o direito à intangibilidade do corpo humano do suposto pai, que protege interesse privado, deve dar lugar ao direito à identidade da criança, que salvaguarda, em última análise, um interesse público, representado pela dignidade da pessoa humana (ANDRIGHI apud DIAS, 2013, p. 423).

No entanto, a respeito disso, verifica-se que o Código Civil, nos arts. 231 e 232, dispõe acerca das consequências legais resultantes da recusa na realização de exame médico, in verbis:

Art. 231. Aquele que se nega a submeter-se a exame médico necessário não poderá aproveitar-se de sua recusa.

Art. 232. A recusa à perícia médica ordenada pelo juiz poderá suprir a prova que se pretendia obter com o exame.

Porém, no que tange, especificamente, às ações de investigação de paternidade, com um espírito mais incisivo, foi editada a Lei nº 12.004/2009, conferindo nova redação ao parágrafo único do art. 2º-A da Lei nº 8.560/1992, in verbis: “A recusa do réu em se submeter ao exame de código genético - DNA gerará a presunção da paternidade, a ser apreciada em conjunto com o contexto probatório”.

Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald tecem comentários acerca do referido dispositivo legal:

Esse dispositivo legal, diferentemente, estabelece um presunção legal relativa, estabelecendo que a prova que se pretendia produzir (demonstrando a existência da relação paterno-filial) será presumida pela recusa do investigado ao exame pericial. Dessa forma, é possível afirmar que, no âmbito das investigatórias de filiação, a recusa ao exame pericial gera a presunção (relativa) de paternidade (2016, p. 665).

“Aliás, o Superior Tribunal de Justiça já havia, anteriormente, editado a Súmula 301, admitindo a recusa como fator de presunção da prova de paternidade” (FARIAS e ROSENVALD, 2016, p. 664), in verbis: “Em ação investigatória, a recusa do suposto pai em submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum da paternidade”.

Sendo assim, tratando-se de ação de investigação de paternidade cuja causa de pedir estiver fundada no vínculo biológico, a recusa pelo investigado na realização do exame pericial de DNA ensejará a presunção legal relativa de paternidade, decorrente da técnica de ponderação de interesses e com fulcro nos artigos supracitados (FARIAS e ROSENVALD, 2016, p. 664).

Seguindo idêntico raciocínio, Maria Berenice Dias afirma que:

O fato é que, pelo que diz a lei, a postura omissiva do réu induz à presunção de paternidade, o que deveria levar à procedência da ação. Não pode ser outra a solução. A resistência é suficiente para provar a paternidade. Mesmo que inexistam provas outras, sua omissão, por si só, justifica o acolhimento da demanda, sob pena de o direito à identidade deixar de ser uma questão de ordem pública para tornar-se uma questão de ordem privada (2013, p. 424).

Não se pode deixar de registrar que essa presunção de paternidade quedará em caso de ações de investigação de paternidade cuja pretensão esteja fundada em vínculo socioafetivo, vez que, conforme já evidenciado acima, o investigado deve necessariamente demonstrar a presença dos laços de afetividade que levaram o investigado a tratá-lo como se filho fosse (FARIAS e ROSENVALD, 2016, p. 665).

ADRIANO DIAS DE FREITAS

OAB/PR. nº 91.152

REFERÊNCIAS

FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: famílias. 8. ed. rev. e atual. Salvador: JusPodvim, 2016.

FRANCESCHINELLI, Edmilson Villaron. Direito de Paternidade. São Paulo: LTr, 1997.

RODRIGUES Silvio. Direito Civil. v. 6. 28. ed. Atualização de Francisco José Cahali. São Paulo: Saraiva, 2004.

COMEL, Denise Damo. Manual Prático da Vara da Família. Revista e atualizada de acordo com o novo código de processo civil. 4 edição. Curitiba: Juruá. 2016.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 9. ed. rev. atual. de acordo com: Lei 12.344/2010 (regime obrigatório de bens): Lei 12.398/2011 (direito de visita dos avós). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013

DIAS, Maria Berenice; PEREIRA. Rodrigo da Cunha (coords.). Direito de família e o novo Código Civil. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

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